sábado, 3 de outubro de 2009

Implicações da incorporação das hepatites no Programa DST/AIDS

Implicações da incorporação das hepatites no Programa DST/AIDS


Ainda é cedo para avaliar as conseqüências que a incorporação do programa nacional de hepatites virais como um novo departamento do Programada DST/AIDS poderá provocar, motivo pelo qual isto não é um julgamento ou posicionamento, devendo ser considerado como um quadro de cenários possíveis.


1 – HISTORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

A primeira ONG de AIDS que se tem conhecimento surge no ano de 1981 na cidade de New York nos Estados Unidos. Na mesma década de 80 começa a se formar o movimento social DST/AIDS no Brasil com a fundação do GAPA (1985) na cidade de São Paulo, a ABIA (1986) no Rio de Janeiro e o grupo Pela Vidda (1989) no Rio de Janeiro. A partir desse momento o movimento de AIDS passa a se pulverizar dando inicio ao GADA, RNP+, GIV e muitos outros, surgindo centenas de ONGs em todos os cantos do Brasil. Passados 25 anos o movimento da AIDS já é um adulto consolidado.

A origem do movimento foi a ansiedade dos infectados após o descobrimento de uma doença desconhecida, letal e sem medicamentos eficazes, sem alternativas terapêuticas. Isso levou a comunidade a gritar por “socorro” das mais diversas formas, em especial “dando a cara” e “indo à rua”. Ao mesmo tempo era necessário se organizar para pressionar nas áreas jurídicas, legislativas e na formação de opinião, um verdadeiro trabalho daquilo que hoje conhecemos como “advocacy”.

O inicio aguerrido obteve excelentes vitorias. O governo teve que “acalmar” os ânimos e o resultado foi um programa de enfrentamento a epidemia de AIDS que hoje é exemplo mundial e orgulho do Brasil. Entretanto, passados 25 anos, no momento atual existem muitas incertezas quando a continuação do trabalho de muitas ONGs de AIDS. O atendimento de reivindicações por parte do governo oferecendo diagnostico amplo e o mais moderno que existe em termos de tratamento mudou a face da doença, deixando de ser letal para passar a ser uma doença crônica, com a qual é possível conviver.

Estando os infectados acolhidos pelo governo muitas das ONGs de AIDS perderam representatividade e poder de pressão. Atualmente o movimento GLS passou a ter maior destaque ao descobrir o instrumento da “passeata do orgulho gay” com o qual consegue mobilizar milhões de pessoas, conseguindo com isso visibilidade e apoio popular e político para novas conquistas.

Nas hepatites o movimento surge no ano de 1986 em Rio Branco – AC, com a criação da APHAC e o Grupo Otimismo em 1987 no Rio de Janeiro, dando inicio a formação de aproximadamente 50 ONGs exclusivas de hepatites e a incorporação no movimento de umas 20 de transplantes, renais crônicos, hemofílicos e outras patologias com alguma relação com a infecção com as hepatites. A maioria das ONGs foi criada em função da hepatite C.

Em maio de 2000 o Grupo Otimismo propõe realizar um dia de divulgação da hepatite C. Em conjunto com outras três ONGs foi fixado o dia 19 de maio para o evento. Este é um marco histórico, sendo a primeira vez que as hepatites conseguiram a atenção na imprensa, fato que passou a motivar infectados a formar ONGs em outras cidades. O movimento do dia 19 de maio cresceu a tal ponto que atualmente mais de 60 países realizam eventos nesse dia e a Organização Mundial da Saúde o poderá declarar como o dia mundial das hepatites. Mais uma vez o Brasil foi pioneiro na mobilização social, dando o exemplo ao mundo.


2 – POLÍTICA GOVERNAMENTAL EM RELAÇÃO ÀS ONGs

Desde sua formação o Programa DST/AIDS compreendeu que um movimento social forte, reivindicatório e ativo seria de fundamental importância estrategica para obter a necessária visibilidade que a epidemia necessitava para poder obter recursos no orçamento da saúde. Muitos esforços foram dispensados e continuam a serem direcionados para capacitar as ONGs de AIDS em tudo o necessário para a luta social, seja em recursos de sustentação, na capacitação do “advocacy”, na estruturação administrativa profissional, na estruturação de departamentos e assessorias jurídicas, na participação em conselhos de saúde, no relacionamento com a imprensa e, em tudo aquilo que pudesse aumentar a visibilidade do problema.

Decisão sabia e acertada dos diversos coordenadores e diretores que passaram pelo Programa DST/AIDS, talvez guiados pelo ensinamento da musica do Cordão do Bola Preta que diz ”Quem não chora não mama, Segura meu bem a chupeta, Lugar quente é na cama, Ou então no bola Preta”, isto é, se indica que é necessário gritar e entrar na luta, já que ficando descansando na cama nada se consegue, sendo necessário participar. Com a pressão e a gritaria os coordenadores podiam chegar ao ministro, aos legisladores e, até ao presidente da republica, e exigir que era necessário atender as demandas para evitar as criticas, as quais cresciam de tamanho a cada dia. Dessa forma foram conseguidas muitas leis, portarias e recursos financeiros.

O PNHV, Programa Nacional de Hepatites Virais foi criado em 2002. Em relação à articulação com a sociedade civil sempre optou por um caminho diferente ao da AIDS. Enquanto o Programa DST/AIDS estimula as ONGs a realizar o controle social e a gritaria quando necessário, o PNHV optou por abafar e evitar a gritaria reinvidicatoria, trabalhando com promessas, a maioria nunca cumprida. Se isso foi obra pessoal dos quatro coordenadores que o PNHV teve nesses sete anos ou se eram ordens superiores ainda é uma incógnita.

Os resultados das duas políticas de atuação com os movimentos sociais podem ser avaliados com os resultados conseguidos, com a frieza crua e nua dos números. Enquanto o Programa DST/AIDS já diagnosticou aproximadamente 60% dos infectados com HIV, os números oficiais mostram que na hepatite B o número de diagnosticados mal chega aos 5% e na hepatite C a somente 3% dos infectados. Em relação ao tratamento pelo SUS, dos 600.000 HIV positivos 200.000 estão em tratamento, ou seja, um de cada três infectados recebe o tratamento adequado. Nas hepatites existem entre 5 e 6 milhões de brasileiros infectados (considerando as hepatites B e C) sendo que em 2008, 1 de cada 350 infectados com hepatite C recebeu tratamento e na hepatite B 1 em cada 900 infectados.

Em termos de recursos por infectados no total dos programas as diferenças são abismais. Enquanto o Programa DST/AIDS dispõe de R$. 3.700, para cada uma dos seiscentos mil infectados, o Programa Nacional de hepatites conseguia no orçamento da união magros R$. 62,00 para cada uma dos pouco mais de cinco milhões de infectados com as hepatites B e C.

Nada mais direto, eficaz e incontestável que comparar os resultados para se saber qual das duas foi a melhor estratégia seguida pelo programas de DST/AIDS e de hepatites.


3 - IMPLICÂNCIAS QUE PODERÃO SURGIR COM A INCORPORAÇÃO DAS HEPATITES NO PROGRAMA DST/AIDS

3-1 – CENÁRIO DAS ONGs

Devemos acreditar que a luta social ao juntar as ONGs de AIDS e de hepatites estará resultando na potencialização do movimento. As reivindicações passarão a ter maior poder de pressão e como conseqüência possuíram maior possibilidade de serem atendidas.

Acredito que a primeira dificuldade será ocasionada pelas próprias ONGs de hepatites, as quais ao se aliar com um movimento mais experiente e estruturado poderão sentir temor de perder representação e talvez prefiram continuar sendo independentes, não desejando que a AIDS participe das suas discussões, de seus eventos. Se isso acontecer, se pretendem a realização de ENONGs só de hepatites, o movimento social estará cometendo um erro histórico.

Se Maquiavel recomendava “dividir para governar”, a população deve se guiar pelo ditado popular que diz que a “união faz a força”. O momento e de aproveitar a oportunidade e passar a trabalhar juntos, todos sem distinção das patologias, lutando seja pela AIDS, hepatites, sífilis, gonorréia e todas as outras DSTs.

A experiência e estruturação do movimento da AIDS passará a ter maior destaque e interesse nas hepatites já que e estimado que até 30% dos HIV positivos estejam co-infectados com uma das hepatites. Possivelmente isso vai ocasionar que ONGs de hepatites de menor representação ou com menos currículo de atividades realizadas percam espaço, mas será o infectado, o portador de hepatite que será o grande beneficiado ao se conseguir a visibilidade necessária a epidemia.


3-2 – CENÁRIO NA HEPATITE B

A hepatite B será a maior beneficiada com a incorporação do programa, pois toda a estrutura de atendimento de HIV/AIDS poderá passar imediatamente a atender os infectados. Somente será necessário estabelecer fluxos corretos para o tratamento correto e evitar que pacientes sem necessidade de tratamento sejam medicados.

A hepatite B e o HIV/AIDS podem ser consideradas “primas” devido à similitude na sua forma de transmissão e desde que respeitadas as características dos protocolos de tratamento existem muitas analogias na questão do tratamento. Todos os CRT-AIDs (Centros de Tratamento de AIDS) poderão atender os infectados com hepatite B aumentando imediatamente o acesso ao atendimento e ao tratamento. Talvez seja necessário dividir o atendimento por dias, para evitar que aconteçam atitudes discriminativas entre as duas doenças.


3-3 – CENÁRIO NA HEPATITE C

Se a hepatite B e a “prima” da AIDS, não podemos considerar a hepatite C como um parente direto, no máximo podemos falar que ao ser incorporado no Programa de DST/AIDS passou a ser um agregado da família, uma espécie de “cunhado” e muitos falam que cunhado não é parente.

Por essa situação especial é impossível se traçar um cenário para o que pode acontecer com a hepatite C. Por um lado poderá ocasionar graves problemas de estigma e discriminação aos infectados, pois ao incluir a hepatite C num programa de DSTs a interpretação da população poderá ser de que a hepatite C e de transmissão sexual, situação essa não prevista pelos autores da incorporação, a qual necessita da necessária e imediata discussão com todos os atores envolvidos.

No inicio a hepatite C poderá aproveitar a força do Programa DST/AIDS para revisar o conceito de hepatopatia grave, para rever erros constantes na Portaria 34/2007 e, para conseguir que os medicamentos deixem de ser considerados excepcionais e serem incorporados no programa de medicamentos estratégicos, mas a médio prazo, devido à hepatite C infectar na sua forma crônica entre 3 e 4 milhões de brasileiros, o que representa a maior epidemia existente no Brasil, deverá se discutir a necessidade de um programa próprio para cuidar do maior problema de saúde pública do Brasil.

Quando coloco no parágrafo anterior que inicialmente será possível se conseguir benefícios estou me baseando nos resultados conseguidos pela AIDS. Enquanto o Programa DST/AIDS consegue incorporar medicamentos nos seus protocolos no prazo de 60 ou 90 dias, o Programa de Hepatites já leva quase quatro anos sem conseguir aprovar a portaria da hepatite B.


3-4 CENÁRIO NA CO-INFECÇÃO HIV/HEPATITES

Os co-infectados passam de imediato a contar com força total, não sendo necessário qualquer comentário.


3-5 – CENÁRIO NAS ONGS DE TRANSPLANTES

Confesso que nunca conseguir entender o porquê as ONGs de transplantes lutam mais para ter representatividade no Programa de Hepatites que no Programa de Transplantes. Tudo bem que as hepatites são um problema presente entre a necessidade de transplantes de fígado e rins, mas a prevenção e o objetivo secundário dessas ONGs, sendo a captação e o aumento dos transplantes é o seu objetivo principal.

Muitas vezes sugeri que deveriam se unir para exigir representação dentro do Programa de Transplantes. È um absurdo não participarem do mesmo, inclusive porque o programa de hepatites se encontra na estrutura da secretaria de vigilância em saúde e o programa de transplantes na estrutura da secretaria de atenção a saúde. Assim o PNHV e agora o Programa DST/AIDS, ambos na estrutura da SVS pouco podem pressionar a SÃS ou contribuir com o aumento dos transplantes.

Considero generosa a atitude das ONGs de transplantes ao se envolver na luta pelas hepatites, mas em relação a seu foco principal, os transplantes, estão batendo na porta errada. Com a incorporação das hepatites no Programa DST/AIDS o foco ficará ainda mais difuso.


4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo não tem como objetivo realizar uma critica destrutiva. Simplesmente tem a intenção de desenhar cenários possíveis de acontecer, os quais não devem ser considerados como os únicos possíveis e sim como idéias para originar discussões com a possibilidade de todos colocarem seus pontos de vista e posicionamentos. Será pelo dialogo e discussão que deverão se estabelecer as bases de um programa eficiente nas hepatites.

Muitos escreveram que a perda de um programa independente de hepatites foi um ato negativo. Não considero isso, pois em sete anos de PNHV existiram alguns avanços, mas não os suficientes para se afirmar que realmente se tratava de um programa de sucesso, pois ficou aquém das expectativas da população e até do próprio governo, daí a decisão de incorporá-lo a um programa de sucesso.

O pequeno número de pacientes tratados, número que ficou estagnado nos últimos três anos, mostrou que se tratava de um programa agonizante. Até de brincadeira poderíamos falar que a incorporação ao Programa DST/AIDS pode ser considerada como um transplante de órgãos objetivando salvar da morte alguém que geneticamente nasceu com a falta dos genes do crescimento.

Todos devem torcer e colaborar para que a partir deste momento as hepatites recebam a atenção que pela sua importância merecem.

Carlos Varaldo
Grupo Otimismo
World Hepatitis Alliance – WHA

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